Anarquistas Graças a Deus: Uma Viagem Íntima pela Vida de Zélia Gattai

Zélia Gattai nasceu em 2 de julho de 1916 em São Paulo e se tornou conhecida por seu fazer literário que inclui novelas, memórias e crônicas. Zélia e Jorge Amado, seu esposo, divulgaram a cultura brasileira ao incluir em seus textos questões sobre desigualdade, resistência contra a ditadura CivilMilitar e a luta por direitos trabalhistas. A obra “Anarquistas, Graças a Deus” é a que ganhou mais destaque, tanto para os apaixonados pela história e cultura de São Paulo quanto para aqueles que desejam recordar e imaginar.

O livro é uma crônica sentimental que mistura realidade e imaginação, foi publicado em 1979 e transformado em minissérie em 1984, pela TV Globo. É uma história que mais parece uma longa conversa íntima, dessas regadas a café. É também a história da cidade de São Paulo no final do século XIX a partir de uma visão Infantojuvenil, apaixonada e atrevida.

A família Gattai é composta por imigrantes italianos bem peculiares. Dona Angelina, a mãe, é uma das personagens mais envolventes. Sentia prazer na leitura de cartazes de cinema em voz alta, recortava pedaços de jornais para leituras posteriores, reunia as vizinhas para a discussão de romances de folhetim e recitava trechos da literatura ocidental, principalmente o amado Dante e o brasileiro Castro Alves. O pai, Ernesto Gattai, participou do primeiro grupo que foi e voltou pela travessia São Paulo – Santos, era mecânico de automóveis (os primeiros da cidade) e um entusiasta de provas automobilísticas. Os filhos carregavam cada qual a sua autenticidade.

A história se passa na casa da alameda 8, uma rua paralela à Av. Paulista e todo o bairro é marcado pela influência de imigrantes árabes e italianos do sul e do norte. Ainda existia mata, burros de carga para a entrega de leite e pão e os bebedouros públicos para cavalos, zebras e elefantes. Um dos hábitos da época era o de se esperar ansiosamente os horários das cerimônias fúnebres divulgadas pela Folha de São Paulo. As crianças recebiam doces e os adultos tentavam adivinhar quão rico era o defunto pela quantidade de cavalos que o carregavam.

No bairro em que viviam, havia o cinema América com programação semanal de filmes velhos ou reprises com música ao vivo. Era sempre lotado de crianças com suas fitas de bangue-bangue e antes dos filmes começarem os eventos da semana eram exibidos em tom noticiário.

O livro também traz memórias de outras regiões de São Paulo, como a região Caetano Pinto, no Brás. Seus moradores eram italianos com culturas e vivências diferentes. Os italianos calabreses, como são chamados os que vieram do sul da Itália, viviam de forma mais orgânica, sem polícia e sem carrocinha. As mulheres eram patriotas, educavam os filhos com tapas e disputavam umas com as outras o processo de limpar as panelas.

Outra personagem fundamental na história é a pajem Maria Negra, que além de preparar a comida favorita de todos da casa, acompanhava Zélia em suas andanças na rua.

“O primeiro galanteio dirigido a mim ao nascer foi de Maria Negra. Naquela noite fria, enquanto aguardavam a minha chegada, Maria Negra não pregou o olho. Andava para cima e para baixo, tomando providências, coando café, fervendo água, desinfetando a bacia. Enquanto isso, lá dentro no quarto, dona Emília Bulcão esmerava-se para conseguir trazer ao mundo, sem causar muitos danos à parturiente, a já denominada Zélia, menina grande e gorda. Era mês de julho, inverno rigoroso; Maria Negra, sem ligar para o frio e nem para o sono, via o dia clarear, esperando ansiosa a sua nova patroazinha; ela chegaria – tinha fé em Deus – antes da criança da vizinha, mais uma vez no páreo com a sua patroa. Até apostara com dona Luiza, irmã de dona Josefina, que a ‘nossa’ chegaria antes.”

Acompanhamos o romance de Maria com Luiz, que trabalhava na única farmácia do bairro e sua aprendizagem do alfabeto e separação de sílabas. Ela acabou engravidando, se casando e deixando a família Gattai. A mudança de Maria acompanha a mudança do bairro, a chegada dos primeiros rádios e o fim do cinema mudo.

Sobre a imigração italiana, Zélia Gattai nos conta a partir de um relato bastante curioso. Giovanni Rossi foi um italiano que escreveu ao imperador D. Pedro II pedindo terras no Paraná para a construção de uma colônia agrícola e anarquista com 150 voluntários. Cada família construiria sua própria moradia e juntos formariam uma sociedade sem leis ortodoxas, religião e propriedade privada. Ocorre que, quando os voluntários chegaram ao Brasil (com a permissão de D. Pedro), os militares haviam tomado o poder e começaram a cobrar impostos ou a própria compra das terras. Isso ocorreu em 1890. Sob a pressão dos novos republicanos e a interferência de católicos raivosos, como o padre da vizinhança que soltava vacas para destruir as plantações, os italianos sonhadores foram despejados sem nenhum direito, dinheiro ou possibilidade de futuro. Alguns encontraram empregos mal remunerados em construções de estradas; outros foram trabalhar em fábricas na região do Brás. Segundo a historiadora Lilia Schwarcz, que escreve o posfácio da obra, os imigrantes italianos substituíram os escravos por dívidas no Brasil.

A infância de Zélia Gattai é contada com encanto, assim como o seu amor pelos livros. Quando a família pegava o bonde, a menina se entretinha durante toda a viagem com os anúncios de remédios da família Baurel. Mais tarde, ela se tornaria uma leitora voraz de Carolina Invernizzi e se matricularia sozinha em uma escola na Consolação, onde os professores emprestavam e comentavam obras de literatura. Foi uma aluna destacada e até recebeu menções no jornal Folha de S. Paulo.

Te convido a embarcar em uma viagem no tempo para uma cidade que não existe mais. Descubra hábitos da época e se perca nas páginas escritas por alguém que desde cedo é apaixonada pela leitura e sua arte transformadora.

Ficha Técnica:  
Título: Anarquistas, graças a Deus
Autora: Zélia Gattai
Gênero: Crônica/Memória
Ano de publicação: 1979
Editora: Cia das Letras

 

Isabela Mendes Escrito por:

É traça de bibliotecas municipais e sebos locais e só funciona depois de pelo menos duas xícaras de café. No mundo das letras, curte contos fantásticos (Hoffmann, Gogol e Allan Poe) e nas telas, as produções brasileiras do Cinema Novo (Nelson Pereira, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade). É curiosa pelo mundo das colagens manuais e registros audiovisuais independentes.

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